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Agronegócio: Novos discursos, velhas práticas no campo brasileiro

Jamilli Medeiros de Oliveira da Silva1

O avanço da produção do dendê no estado do Pará vem ganhando cada vez mais atenção em âmbito acadêmico e em noticiários, seguindo a tendência mundial de crescente expansão do cultivo. Simultaneamente, criam-se mais políticas de classificação e adequação agroclimática para esta monocultura.

A crise mundial impulsionada pela crise do petróleo da década de 1970 chamou atenção para fontes alternativas de energia, estimulando uma corrida para suprir a demanda energética do mundo da industrialização. Nesse período, temos a iniciativa do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), que surgiu como alternativa à economia nacional para atender a demanda energética do Brasil (ROTHMAN; FURTADO, 2005). No ano de 1990 a demanda energética se volta também para a perspectiva da produção de óleo vegetal como fonte de energia alternativa para a produção de agrocombustível na busca pela "energia limpa" com forte potencial econômico.

No estado do Pará, a consolidação da produção de dendê aconteceu de maneira gradativa, por meio de vários projetos que fizeram/fazem parte da agenda do governo. O seu cultivo teve início primeiro em escala nacional, no estado da Bahia, com a vinda de dendezeiros em navios negreiros oriundos principalmente de Moçambique, Benin e Angola. No cenário Amazônico paraense – Norte do país –, sua expansão ocorreu a partir da década de 1950 por meio da iniciativa do Instituto Agronômico do Norte (IAN), que daria origem, depois, à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa Amazônia Oriental. Em 1955, um convênio entre o IAN e a Superintendência do Plano de Valorização Econômico da Amazônia (Sudam), bem como um posterior acordo com a empresa francesa Institut de Recherches Pour Les Huileset Lesoleagineux (IRHO), em 1967, foram medidas para organizar e impulsionar a expansão do dendê. Desde então, o cultivo tem se tornado peça chave para o discurso de desenvolvimento rural alternativo na Amazônia.

Com a abertura para iniciativas privadas em 1970 é criada a Dendê do Pará S/A (Dempasa), empreendimento que estimulou a expansão da monocultura (HOMMA, 2016) e também a criação de novas empresas como a Marborges, Bioenergia Brasil, Agropalma entre outras que viram o estado do Pará, e mais especificamente no Nordeste paraenses, um potencial lócus de expansão para os seus negócios.

É importante ratificar que a lógica do cultivo desta oleaginosa se insere em um contexto de buscas por fontes alternativas de energia com a crise do petróleo de 1970, impulsionada pela crise econômica dessa década, e se apropria da região amazônica por fatores agroclimáticos e hídricos propícios a esta monocultura.

O Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB), criado em 2004, veio para promover produção do agrocombustível no país por meio do então Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), com o objetivo de exibir para o mundo o enganjamento do Brasil na busca por novas fontes de energias renováveis, tendo como proposta a inclusão da agricultura familiar nessa cadeia de produção por meio do Selo Combustível Social (SCS).

Em síntese, as empresas que possuírem o SCS conseguem subsídios por meio de melhores financiamentos no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), além de ter acesso a 80% do mercado cativo dessa fonte de energia. Para isso, precisam cumprir algumas obrigações com os agricultores camponeses a elas integrados, como a oferta de assistência e capacitação técnica, assinatura de contratos e o compromisso em obter a matéria prima deles proveniente.

No ano de 2010, foi lançado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva o Plano Palma Verde em Tomé-Açu, município localizado no Nordeste paraense. No mesmo ano, criou-se o Programa de Produção Sustentável de Óleo de Palma (PSOP), oferecendo mais estrutura ao projeto de expansão de dendê na região com o zoneamento agroecológico feito para definir áreas aptas ao seu cultivo.

Estudos como o diagnóstico da produção de palma, disponibilizado em 2018, revela o amplo crecimento do cultivo do dendê no Brasil entre os anos de 2009 a 2016, passando de 106 mil hectares para 236 mil ha nesse período, cenário no qual o estado do Pará aparece com 88% da área total produzida. O diagnóstico destaca também que o Brasil ainda tem muito a expandir em termos de área de produção devido à demanda em potencial desta oleaginosa, além de enfatizar o discurso de sustentabilidade ambiental e social do projeto (BRASIL, 2018). Nessa ciscunstância, o Nordeste paraense, e mais especificamente o município do Acará – lócus desse estudo –, se torna peça chave a essas políticas de expansão da monocultura por empresas estatais e multinacionais por ter aptidão climática e por seu potencial de extensão de terras.

O município em estudo se apresenta como o terceiro mais expressivo na plantação desta oleaginosa, e totalizou 195.000 toneladas de dendê no ano de 2016 (IBGE, 2016). A produção é voltada para a indústria alimentícia, cosmética e para a fabricação do agrocombustível, passando a competir com lógicas de vida diferenciadas que ali já estavam estabelecidas, como comunidades quilombolas, indígenas e assentamentos rurais.

A respeito desse potencial de expansão, no ano 2012 duas empresas em consórcio se destacaram: a Bioplama/Vale e a Biocombistível PBIO/GALP, momento no qual ambas representavam cerca de 1/3 de área de dendê plantada (VILLELA, 2014).

Em específico, a Empresa Biopalma/Vale, constituída enquanto sociedade anônima fechada, controlada pelo grupo MSP, adentrou nesse mercado no ano de 2007. Em 2009, aconteceu o consócio entre essa empresa e a Companhia Vale do Rio Doce, denominado Consórcio Brasileiro de Produção de Óleo de Palma (CBOP), tendo a Vale inicialmente 41% e a Biopalma 59% das ações. No ano de 2012, a Vale aumentou a sua participação para 70%, pagando 173 milhões de reais para a Biopalma (CIARELLI, 2011). Em 2017, a participação societária desse consórcio era composta por 98,12% da VALE S.A., 1,23% do MSP Fundo de Participação e 0,65% da Bio Participação S.A.

A produção da Biolpalma/ VALE, em particular, é destinada para indústria alimentícia, cosmética e para a produção do agrocombustível. Suas áreas até o ano de 2016 eram compostas por cerca de 156.536 ha de terras próprias, sendo que destes, 56.487 mil ha são destinados à plantação de dendê. A atuação da Biopalma/Vale no estado do Pará se faz importante no nosso processo de investigação, uma vez que a empresa vem atuando em sua lógica de expansão de capital e propriedades em direção a comunidades quilombolas no Alto Acará, estudadas por esta pesquisa.

As consequências da expansão do dendê nas comunidades quilombola do Alto Acará.

O território quilombola estudado é formado por seis comunidades: Vila Formosa, Turé III, 19 do Maçaranduba, Monte Sião, Ipitinga Grande e Ipitinga Mirim. Juntas, elas lutam por titulação definitiva do seu território desde 2009, se organizando em torno da Associação dos Moradores e Agricultores Quilombolas do Alto Acará (Amarqualta). O território da Amarqualta já passou pelo processo de reconhecimento da Fundação Cultural de Palmares e teve sua área demarcada pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), já que parte de suas glebas é Federal e outra parte é Estadual. Seu território tem uma extensão de 18.000 km², o que representa aproximadamente 22 mil hectares.

As famílias quilombolas do território da Amarqualta vivem sob a lógica de autonomia da produção de suas terras, autonomia esta que está ligada à liberdade no tempo de trabalho, na escolha do que plantar de acordo com a necessidade do consumo da família, nas relações de parentesco, vizinhança e ajuda mútua. Há ainda a forte relação com a natureza, entendendo que esta é vital para seu modo de vida, o que implica na necessidade básica de manter preservadas as florestas que lhes fornecem frutos nativos e caças, além das águas do Rio Acará e igarapés – braços menores de rios, muito comum na região amazônica – utilizadas para: pescar, beber, tomar banho, cozinhar, lavar roupas e louças, no lazer de muitas crianças, além de servir como via de acesso às cidades do Acará e de Tomé-Açu e a outras comunidades mais próximas por meio pequenos barcos e canoas.

Nesse sentido, Bombardi (2004, p. 202) afirma que "o tempo do trabalho é, nas unidades camponesas, determinado por dois fatores: o primeiro é a necessidade da família e o segundo é a natureza, seja ela em um ritmo cósmico, seja pelo ciclo do cultivo". Dessa forma, entendemos que a lógica de vida dos povos ligados à terra acontece também de maneira i-material, pautada no bem-estar da familía e não na necessidade do lucro. Em outras palavras, conecta-se a campesinidade descrita por Woortmann (1990), que tem como base o tripé: terra, trabalho e família, o que os diferencia da lógica de produção do agronegócio do dendê. É a partir dessa diferenciação da função da terra que podemos visualizar que para os quilombolas seu valor reside na reprodução e manutenção de seu modo de vida, e para as empresas sob a ótica do preço e das rendas que lhe aufere. Essa diferença tem ocasionado conflitos, devido à expansão das áreas de dendê para as proximidades das comunidades.

Foi a partir do avanço do dendê que as comunidades da Amarqualta se organizaram em torno da apropriação de suas etnias para lutar por seu território contra a lógica predatória da produção do dendê. O dendê na região se instala a partir de 2007 sob o discurso de um desenvolvimento sustentável, pautado na responsabilidade social, econômica e com o meio ambiente, além de enfatizar a responsabilidade com a economia verde, já que em teoria a monocultura do se expande sob áreas desmatadas, contribuindo para o sequestro de carbono e para o desenvolvimento rural e ambiental como um todo. Backhouse (2013) explica que tal discurso de "sustentabilidade" tem o intuito de legitimar o avanço do agronegócio e justificar o violento processo de privatização de terras por meio da retórica da proteção do clima e do meio ambiente. Assim, foi a partir dessa diferenciação de olhar para terra, como terra de trabalho e terra de negócio (MARTINS, 1981), que os moradores da Amarqualta se organizaram para lutar contra o processo de violação de seu território.

Desde então, várias lideranças e outros moradores passaram a denunciar processos como a poluição de seus rios e igarapés devido à pulverização de agrotóxicos na plantação de dendê. Esses agrotóxicos são levados com as águas das chuvas até os rios, poluindo-os. Outra questão, também relacionada às águas, é o processo de perda no volume dos rios e igarapés. Além disso, há denúncias contra o grande desmatamento ilegal que vem acontecendo nos últimos anos na comunidade do Turé III, podendo estar ligado a fazendeiros e madereiros locais.

No ano de 2014, o Instituto Evandro Chagas realizou um estudo no qual se detectou a contaminação das águas de rios por agrotóxicos em áreas de expansão do dendê no estado do Pará. Esse estudo teve como pontos de coletas os Municípios de Concórdia do Pará, Bujaru, São Domingos do Capim e o Acará.2 Casos de contaminação por agrotóxico vêm se alastrando pelo Brasil, como apontam os estudos de Bombardi (2012; 2013; 2017), revelando que o Brasil consome 20% de todo agrotóxico comercializado mundialmente, bem como que seu uso extensivo vem causando a morte de milhares de pessoas no campo. Várias pesquisas apontam ainda as consequências violentas relativas à contaminação da água, do solo e do ar por esses produtos. Não obstante, em Junho de 2018 o Presidente Michel Temer sancionou a lei 6.299/2002, que visa ampliar o leque de agrotóxicos na agricultura extensiva brasileira.

Diante disso, as populações quilombolas vêm se mobilizando em torno de um movimento de revolta e denúncias a todas essas violências sofridas, muitas vezes invisíveis e camufladas em discursos e marketing nos quais se vendem o agronegócio e as fontes de energias ditas "renováveis" como benéficas, mas que se apoiam na extração predatória do solo e da água, recursos vitais para a manutenção e reprodução da vida dessas populações originárias, que carregam consigo um sentido de identidade e pertencimento em relação à natureza.

Diante dessa luta i-material pela terra, Nazildo dos Santos Brito – uma das lideranças do território da Amarqualta – não se calou, lutou organizando as comunidades para reagir contra os que matam e desmatam as florestas, contra os que poluem seus rios e solos, lutou contra toda violência causada à sua família e companheiros, mesmo sendo ameçado de morte por diversas vezes – como ele mesmo nos contou. Na noite do dia 14 de Abril de 2018, ao voltar para sua casa em um dos ramais do território da Amaqualta, Nazildo foi assassinado. O que outrora foi ameaça se concretizou e lhe tirou a vida. A terra que para ele tinha ampla representatividade nutriu-se de seu sangue. Nazildo se foi, mas deixou um grande legado de luta e resistência a seus companheiros que continuam a se articular diante da expansão do agronegócio do dendê em sua direção, lutando, r-existindo, por seu modo de vida e de produção na/da terra e "[...] por modos diferenciados de sentir, agir e pensar" (PORTO-GONÇALVES, 2012, p. 130).

REFERÊNCIAS

BACKHOUSE, M. A desapropriação sustentável da Amazônia: o caso dos investimentos em dendê no Pará. Berlin: Freie Universität Berlin, 2013. 32p. Fair Fuels? Working Paper.

BOMBARDI, L. M. Atlas: Geografia do uso de Agrotóxicos no Brasil e conexão com a União Europeia. São Paulo: FFLCH - USP, 2017.

BOMBARDI, L. M. Violência silenciosa: o uso de Agrotóxicos no Brasil. In: SIMPÓSIO INTERNACIONALDE GEOGRAFIA AGRÁRIA, 6., 2013, João Pessoa – PB. Anais... João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2013. p. 1-16.

BOMBARDI, L. M. Agrotóxicos e agronegócio: arcaico e moderno se fundem no campo brasileiro. Direitos humanos no Brasil 2012: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

BOMBARDI, L. M. O bairro reforma agrária e o processo de territorialização camponesa. São Paulo: Annablume, 2004.

BRASIL. Diagnóstico da Produção Sustentável da Palma de Óleo no Brasil. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Brasília: Mapa/ACE, 2018.

CIARELLI, M. Vale compra Biopalma da Amazônia por US$ 173 milhões. O Estado de São Paulo, São Paulo, 02 fev. 2011. Disponível em: . Acesso em: 02 jun. 2017.

HOMMA, A. K. O. Cronologia do cultivo do dendezeiro na Amazônia. Documentos 423. Embrapa Amazônia Oriental: Belém, 2016.

MARTINS, J. de S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1981.

MPPA. Instituto Evandro Chagas detecta contaminação por agrotóxicos na Região de Expansão do Dendê. Belém, 2014. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2018.

PORTO-GONÇALVES, C. W. Amazônia, Amazônias. 3°. ed. – São Paulo: Contexto, 2012.

ROTHMAN, Harry; FURTADO, André. A possível contribuição da avaliação tecnológica para os programas de bioenergia. In: ROSILLO-CALLE, Frank et al. (Org.). Uso da biomassa para produção de energia na indústria brasileira. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2005. p. 121-162.

VILLELA, A. A. Expansão da Palma na Amazônia Oriental para fins Energéticos. 2014. 360 f. Tese (Doutorado) – Programa de Planejamento Energético, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.

WOORTMANN, K. "Com Parente não se Neguceia": o Campesinato como Ordem Moral. Anuário Antropológico/87. Brasilia: UNB/ Tempo Brasileiro, 1990. p. 11-73.

1 Mestranda pelo programa de Pós-grduação em Geografia - Unesp Rio Claro – jamillimosilva@gmail.com. Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo – Fapesp.

2 MPPA. Instituto Evandro Chagas detecta contaminação por agrotóxicos na Região de Expansão do Dendê. Belém, 2014. Disponível em: . Acesso em: 23/04/2018.

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